Capítulo 14, Parte I
Subi a pequena escadinha da varanda, as malas pesadas
fazendo com que meus passos fossem mais lentos. Deixei-a no meio do meu caminho
e olhei para a casa em que passei toda a minha infância e boa parte da
adolescência.
Ela continuava no familiar tom de bege, dois andares,
cercada por um jardim colorido que minha mãe cuidava com dedicação e um antigo
balanço feito com uma corda e um pneu velho. Era outono, e tudo tinha cheiro de
folhas queimadas e flores desabrochando. Aproximei-me da porta da frente e com
o coração acelerando, apertei hesitante a campainha.
O silencio era mortal e por um momento, desejei que não
houvesse ninguém em casa e essa seria a deixa para eu voltar para a casa do meu
pai. Todavia isso não aconteceu e em
poucos momentos ouvi um barulho de salto sobre o piso vindo em direção a porta.
Pelo vidro, pude ver minha mãe se aproximando, a cabeça curvada procurando a
chave.
Quando ela abriu a porta, nós duas ficamos estáticas no
lugar. Eu não sabia qual seria a reação dela ao me ver, sendo que não a
visitava uma única vez desde a minha partida. Com o tempo, o numero de ligações
foi diminuindo assim como a proximidade e conversas entre nós duas. Nos
primeiros dois anos ela insistira de eu
passar no mínimo um final de semana por mês com ela e no fim, não
compareci nem em datas especiais como o Natal. Eu sabia o quanto a tinha
magoado todas as vezes que prometi vir e não compareci e principalmente em
datas importantes que sempre foram comemoradas, como o meu aniversário.
- Oi – sussurrei insegura diante do olhar indecifrável dela.
Por um momento achei que ela fosse fechar a porta na minha cara, mas esse
pensamento se dissipou quando fui envolvida em um abraço forte.
- Graças a Deus – ela murmurou entre os meus cabelos. Senti
o corpo dela tremendo levemente contra o meu – Não sabe o quanto eu tive medo
de nunca mais vê-la.
Um espasmo de dor me atingiu ao notar a magoa e alivio da
voz dela. A apertei mais forte, tentando diminuir aquele vazio que a ausência
dela deixou durante todo aquele tempo. Era tão bom sentir a macies da pele
dela, o abraço aconchegante, o conhecido cheiro de lavanda e biscoitos!
Ficamos assim por longos minutos, até que ela me afastou,
segurando os meus ombros e seus olhos me inspecionando.
- Você está tão linda Liz, tão linda!
Sorri sem jeito, notando as marcas de lagrimas no rosto
dela, as mesmas que deveriam estar no meu rosto também. Olhar para ela é a
mesma coisa que voltar no tempo. Tudo estava igual a meu ver, embora eu
soubesse que estava diferente.
- Obrigada mãe – sussurrei.
- Vamos, entre – ela disse, descendo as escadinhas e pegando
as minhas malas. Fiz menção de pega-las mas ela apenas balançou a cabeça – Você
deve estar cansada. Vou deixar roupas limpas em cima da sua cama e enquanto
você toma um banho.
- Precisamos conversar mãe – falei, seguindo-a para dentro
da casa. Um cheiro de bolo de chocolate me atingiu.
- Eu sei – ela disse sem parar, subindo as escadas. Passei
rapidamente os olhos pelos cômodos do andar superior. – Mas primeiro descanse,
temos muito tempo.
Não respondi. Apenas a segui silenciosamente pelo segundo
andar. Respirei fundo ao andar pelo corredor que levava ao meu quarto. Ela
abriu a porta com força e entrou. Parei na entrada do quarto, sentindo-me
constrangida, deslocada. Eu não me sentia digna de estar ali, o quarto não
parecia me pertencer mais.
- O tempo parou aqui – ela disse, colocando as minhas coisas
em cima da cama – Parece que eu adivinhei que você vinha, arrumei e limpei tudo
ontem a tarde.
- Nada mudou mesmo – constatei feliz. Parecia que eu estive
ali há poucas horas atrás. Os desenhos, bonecas, fotos, livros continuavam no
mesmo lugar em que eu lembrava de ter deixado. O leve cheiro de mofo não me
incomodou.
- Tentei manter tudo como você deixou – ela disse, já saindo
do quarto – Porque não houve um dia em que eu não tivesse esperado você bater
na porta.
Fiquei estática com o ultimo comentário e mais uma voz uma
onda de remorso me atingiu. Eu queria tanto esclarecer tudo! Contar o que havia
acontecido nos últimos sete anos para eu nunca mais ter aparecido!
Quando ela desapareceu do meu campo de visão, voltei os meus
olhos para o quarto. O Sol entrava pelas cortinas de renda, banhando- o de luz.
Nada havia mudado e por um momento desejei ser a menina de 17 anos que dormia
naquele lugar, a dona daquele lugar. Sorri para o velho urso de pelúcia em cima
da cama. O segurei enquanto vagava por cada canto daquele ambiente: abri as
gavetas que ainda tinham alguma peças de roupa, tentei relembrar o porque das anotações
em folhas de papel em cima da escrivaninha, abri o guarda-roupa e franzi a
testa ao ver uma caixinha de papel ao fundo.
Tirei-a de lá, meus dedos ficando marcados com a grossa
camada de pó. Ao abrir senti lagrimas quentes e involuntárias em meio ao meu
sorriso: havia cartas de amigos, de namoradinhos de infância, uma chupeta de
criança, dois dentinhos de leite, várias fotos e por fim uma correntinha de
prata. Segurei-a entre os dedos e por impulso a coloquei: foi um presente de 15
anos que...
Estaquei ao lembrar-me de um nome doloroso e que estava
marcado a ferro em mim.
- Precisa de alguma coisa filha?
Assustei-me ao ver minha mãe dentro do quarto. Sorri de leve
- Não, não, obrigada. Já estou indo tomar um banho.
- Pode pegar uma toalha limpa no meu armário. – declarou
antes de sair mais uma vez.
Peguei uma toalha felpuda, separei meus produtos de higiene
e roupas íntimas e me entreguei a deliciosa tarefa de tomar um banho quente e
demorado. Só sai quanto meus dedos estavam enrugados e uma grossa camada de
vapor escorria na parede de azulejos.
Coloquei uma calça bege confortável, uma camiseta larga e
sai de pé no chão até a cozinha. Minha mãe servia uma xicara de café quando
sentei a mesa.
- Deve estar faminta.
- Não estou – declarei, afastando a oferta – Quero conversar
com você mãe.
- É o que venho esperando há anos Elizabeth.
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Quando entrei no meu novo quarto, na casa de Marcelo, foi
que percebi que as minhas atitudes poderiam mudar a minha vida radicalmente.
Ali não havia o aconchego, a segurança de a minha mãe estar na porta ao lado, nem
meus amigos a poucos metros de mim. Eu estava em uma cidade desconhecida, longe
pra caramba de tudo o que eu amava e conhecia e teria que conviver com o homem
que diziam ser meu pai, mas não passava de um estranho a mim.
- Gostou do seu quarto? Contratei uma arquiteta para
decorá-lo, ela parece entender sobre quarto de adolescentes.
Timidamente, deixei minha bolsa em cima da cama King Size
com dossel e observei o amplo espaço que agora era meu: a cama era o centro das
atenções do quarto, digno de uma historia de princesas da Disney e de cada lado
dela havia um criado mudo de carvalho. No mesmo material, tinha uma grande
escrivaninha com uma estante de livros embutida, um laptop branco e um lindo
candelabro decorativo. As paredes eram cor-de-rosa, teto e rodapés brancos.
Havia um closet que jamais seria totalmente preenchido se dependesse das coisas
que eu havia trazido na viajem. Mas a melhor parte com toda a certeza era a
sacada com uma vista incrível para o mar.
O quarto era lindo, mas totalmente impessoal.
- É maravilhoso Carol – forcei um sorriso a ela que foi retribuído.
- Que bom que gostou – caramba, será que ela ia mesmo
insistir em ser a madrasta boazinha??? – Bem... Vou deixar você a vontade,
creio que precise de um tempo só pra você. Tem um banheiro naquela porta ali,
ao lado do closet – indicou – vou pedir pra Ruth deixar toalhas limpas e se precisar de alguma coisa basta chamá-la.
Modo automático – ativado, pensei.
- Obrigada. – dei um sorriso amarelo e revirei os olhos
quando ela fechou a porta.
Dei uma volta pelo quarto, reparando na riqueza de detalhes
de cada peça do cômodo. Depois, tirei minhas roupas das malas e comecei a
coloca-las nas amplas prateleiras e armários do closet. Tive um choque ao ver
que Carol ou seja lá quem foi, havia comprado vestidos de festa, camisetas com
e sem estampa, saias, jaquetas e um arsenal de jeans. Meus olhos se
esbugalharam ao ver uma fileira de Keds e All-Star alinhados.
- Nossa... - sussurrei ao ver o valor de um calçado em uma
etiqueta.
De duas uma: ou eles haviam esquecido ou era um modo de me
impressionar, meio que dizendo “gastamos tudo isso porque gostamos de você”.
Sorri com a opção de “puxar o saco”.
Cansada, tomei um longo banho e coloquei o pijama mais surrado
que tinha: calça de moletom furada e uma camiseta larga, um meio de protesto
contra a camisola da Victoria Secrets
que havia ali. Já era passada das dez da noite e meu cansaço me deixou no
limite. Recusei o jantar oferecido e apenas agradeci quando deitei na enorme
cama. Fitei o teto e senti falta das estrelinhas que brilham no escuro. Tomei
um susto quando meu celular vibrou ao meu lado. Havia 22 ligações perdidas,
todas de Ian. Não retornei nenhuma, embora os meus dedos formigassem para
digitar o numero dele e ouvir nem que seja um alô daquela voz profunda. Abri
uma mensagem dele. Não resisti e me chutei mentalmente.
De: Ian
Para: Liz
“ Achou mesmo que conseguiria ir
embora sem que ninguém ficasse sabendo? O que deu em você Elizabeth??? Acabei
de ligar na sua casa e sua mãe me diz que você está morando agora com o seu pai.
O que aconteceu pra você tomar um decisão dessas? Você sempre disse que não iria
morar com ele e sem mais e nem menos você vai e ainda sem avisar nenhum dos
seus amigos. Daniele está muito decepcionada com você e eu nem vou dizer o que
estou sentindo. Quero conversar com você então por favor, atenda as minhas
ligações...não me faça ir até você...”
Li e reli várias vezes a mensagem.
Eles tinham todo o direito de estarem bravos e eu estava
mais brava comigo mesma, porque nem um motivo sólido eu podia apresentar a eles
em minha defesa.
Liga pra ele Liz...
Você não precisa fazer isso... Aja como uma adulta!!!
Repreendi o meu lado sensato. Se eu ligasse tinha certeza
que desmoronaria e em breve voltaria para casa. Por outro lado, se eu não
respondesse, tinha certeza de que Ian viria atrás de mim. Pensei por longos
minutos no que dizer até começar a digitar.
De: Liz
Para: Ian
Já havia tomado essa decisão há tempo
e não tive coragem de contar a vocês. Vou morar com o Marcelo e desta vez, por
tempo ilimitado. Cansei da mesmice, de sempre encontrar as mesmas pessoas, ir
aos mesmo lugares e toda essa rotina chata. Quero novas experiências e sei que
vou conseguir isso aqui. Não me despedi porque lamentos são desnecessários. Não
me leve a mal, mas Daniele é um porre de amiga e você já teve seus dias
melhores. Quando quiser, pode me ligar que atenderei ou mande cartas que
prometo que respondo. Só não me venha com cobranças...não devo nada a vocês. Um
bjo.
Quase chorei ao apertar o botão enviar. Aquela não era eu e
por Deus, como eu queria que ele notasse a mentira em tudo o que havia escrito
e viesse ao meu encontro.
Esperei que ele respondesse... E nada.
O cansaço continuava, mas a minha mente não permitia o descanso.
Passei a noite em claro, esperando pela resposta dele.
E assim foram os dias. Ele me ligava as vezes e eu tentava
passar uma animação absurda pelo telefone: ainda bem que ele não conseguia ver
a minha expressão. Quanto a mim, cuidadosamente respondia as suas perguntas mas
nunca tomava a iniciativa de ligar para ele. Minha mãe vivia chorosa no telefone,
cobrando visitas e ligações que eu não fazia. Daniele nunca mais falou comigo e
nos intervalos da faculdade, ficava imaginando como ela estaria, se havia
passado em direito e relembrando nossas conversas animadas e sem noção as
vezes.
Não havia um dia que eu não sentisse a falta deles, e doía saber
que a vida seguia sem mim. Doía saber que não pude acompanhar o crescer deles e
que se um dia eu retornasse as coisas nunca mais seriam as mesmas.
Marcelo e eu ficamos muito próximos durante os anos
seguintes. Ele respeitava o meu espaço e eu o dele. Não havia cobranças,
necessidades de conversar para quebrar o silencio ou manter formalidades. Ele
tinha os afazeres dele e eu os meus, e desde que Caroline havia saído de casa
depois de uma briga totalmente infantil com Marcelo, uma estranha paz caiu
sobre a casa. Ele era legal até, tinha que admitir. Gostava de escutar a voz
suave contando historias de sua infância, o olhar calmo quando eu contava sobre
o meu diz, a risada quando os amigos dele vinham para assistir o futebol e
principalmente, gostava das noites de verão, em que nós dois sentávamos na
calçada e ele começava tocar musicas antigas em seu violão. Nosso
relacionamento era constituído da minha vinda a cidade em diante. Infância e
minha mãe eram assuntos evitados.
- Minha filha precisa de um namorado – Marcelo brincou certa
noite, quando o filho de um dos seus amigos veio para assistir ao jogo.
Eu falava com minha mãe pelo Facebook quando levantei a
cabeça e me deparei com o olhar risonho de Edgar... E nossa senhora do olhar,
que olhos lindos. Corei violentamente e desviei a atenção, amaldiçoando
Marcelo.
Balancei a cabeça e voltei a atenção a tela do laptop...e
senti um mal estar me atingir rapidamente. Eu sabia que estava muito pálida.
Você não vai
acreditar, Ian pediu Marina em casamento ontem à noite, na casa dos pais dela e
já marcaram a data! Vai ser no dia do seu aniversário!!!
- Está tudo bem
Elizabeth?
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